O Observador - Primeiro Capítulo

17:06

"Preciso te contar uma coisa, e sei que será a última que irá querer ouvir de mim."

          A vida é complicada para aqueles que não entendem o significado dela, e não é tão simples descobrir, não é algo que dá para procurar em um livro, ou pedir uma segunda explicação para o professor, é algo que deve se encontrar sozinho. Os pais, em geral, costumam advertir os riscos físicos que podemos correr no mundo, começa com não colocar a mão no fogo, não engolir nossos brinquedos, não pular do alto da escada, não falar com estranhos, e então, não devemos dirigir bêbados, não ter relações sexuais sem camisinha... Mas onde estão os avisos emocionais? Onde está o ''participe da vida''? Por que ninguém me contou que tínhamos que achar o sentido da nossa existência sozinhos? Talvez se eu soubesse disso mais cedo, não teria apostado todas as minhas fichas em outra pessoa.

          Resolvi entrar na roleta russa de pessoas em uma segunda-feira chuvosa, aliás, é surpreendente como as segundas costumam carregar essa característica deprimente. Tive um fim de semana complexo antes disso, derramei muito mais água do que as nuvens ameaçam desabar na cidade cinza de concreto, foram más notícias. Tentei por um tempo disfarçar o que estava sentindo de mim mesmo, acho que por conta do medo de me quebrar e não haver mais quem juntar os pedaços. Foi uma boa iniciativa de minha parte, me rendeu um banho e um café da manhã sem lamentações, mas na janela molhada do ônibus, meus olhos se deixaram acompanhar o clima lá fora. 

          - Você está bem? - Ouvi uma idosa sentada ao meu lado perguntar. Não tenho certeza se foi para mim, contive o reflexo de virar o rosto, não precisava de apoio emocional de uma estranha. Ela desceu no próximo ponto e ficou parada na calçada, pela janela pude vê-la sorrindo para mim enquanto o ônibus avançava o semáforo.

          Mais tarde eu iria descobrir que seu nome era Patrícia, mãe de dois filhos, e avó de três crianças, seu filho mais novo e seu marido teriam morrido três anos antes em um acidente de barco, bem, por enquanto ela era apenas a velhinha que me dera um sorriso simpático enquanto eu me afogava em meus pensamentos.

          Desci do ônibus e caminhei em direção à escola, Kate estava parada em frente ao portão olhando para os lados à procura de alguém, suspeitei que a busca era por mim, caminhei com passos largos limpando meu rosto das lágrimas a medida que me aproximava, ainda com alguma distância abri a boca na tentativa de falar algo, ela foi mais rápida:

          - Quer me contar o que aconteceu? - A voz dela era calma, quase normal, mas ao mesmo tempo estava carregando de compaixão, talvez pena, as lembranças da sexta à tarde voltaram a invadir minha mente e me segurei para não chorar. O silêncio era palpável, e durou pouco. - Eu não entendi o que te deixou tão chateado comigo, achei que fossemos amigos, eu te contei um segredo, sobre uma situação que estava me machucando, e eu esperava apoio, e não que você fosse se afastar de repente. 

         - Eu não queria. - Falei em um sussurro ligeiro, voltando a morder meu lábio segurando a mim mesmo com tudo que podia.

          - Se não queria se afastar então por que saiu correndo? Não me deu chance de falar mais nada, não respondeu minhas mensagens, não atendeu minhas ligações, eu que deveria estar deprimida assim, eu preciso de você para ser meu suporte. - Eu não queria falar agora, precisava pensar melhor no que dizer antes de jogar algo fora para sempre, respirei fundo e entrei pelo portão de ferro, senti Kate puxando meu braço, mas em um movimento me libertei e continuei a andar, sem olhar para trás, eu precisava de mais tempo.

          Deitei minha cabeça na mesa da sala, e acompanhei pelos minutos do relógio a aula passando, estava tão devagar e agradeci por isso, não queria que tocasse o sinal, não queria encontrar com ela no corredor. Mas aquilo não iria me salvar, Kate estava na porta à minha espera, por que tinha que ser tão persistente? Por que não desistia de falar comigo? De me ter como amigo? Como que eu, tão idiota, tive coragem de fazer algo com uma pessoa tão pura? Senti seus olhos castanhos me fitando.

          - Por que está fugindo de mim? - Ela perguntou, com os olhos ameaçando cair uma lágrima. Ela não era culpada de nada, e eu não podia mais deixa-la se sentir assim.

          - Eu preciso te contar uma coisa, e sei que será a última que irá querer ouvir de mim.

         - O que foi? Me conta, por favor. - Dessa vez as gotas achavam seu rumo em sua bochecha que agora estava rosada, seus olhos brilhavam. Nunca a vira tão sensível e tão bonita, eu queria me lembrar dela, da sua voz, da cor de seus olhos, do seu toque, afinal, sempre fui um observador da vida.

          - Fui eu. - deu para sentir a interrogação no rosto dela, continuei. - Fui eu quem espalhei os boatos sobre você, e as suas fotos.

          - O quê? Como? - Dava para sentir o sofrimento na voz dela, as palavras sendo ditas por entre soluços e lágrimas. - Mas você é meu melhor amigo, eu confiei... - Foi o bastante para eu me quebrar também. Dois adolescentes parados no meio de um corredor que agora estava vazio. - Por quê?

          - Você estava se afastando, estava virando uma das populares, havia entrado no grupo de cinema, participando de novos grupos sociais... eu não queria te perder. Me perdoa.

          - E por isso destruiu minha auto estima? Arruinou minhas chances de entrar no festival de filmes? Acabou com a nossa amizade? - A emoção em sua voz tinha ido de triste para inconformada e depois com raiva em uma rapidez louvável, e se eu não estivesse no meio de um conflito, iria apreciar esse feito. - E sobre não me perder? Como foi?! - Me joguei no chão sem forças para ficar em pé, meu coração doía, meu corpo todo estava se quebrando, e então eu vi ela indo embora.

          E a roleta-russa de pessoas da minha vida disparou seu primeiro tiro. 

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Em breve, uma continuação.

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